CARTA 7ºSENABS: DESAFIOS ENFRENTADOS PELA ENFERMAGEM NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE/ CBEn 2022
As trabalhadoras e trabalhadores em enfermagem da área de Atenção Primária à Saúde(APS)1 , presentes no dia 18 de novembro de 2022, na mesa de encerramento do 7º Seminário Nacional de Diretrizes de Enfermagem na Atenção Básica em Saúde (SENABS), realizado no Fista Convention Salvador-BA: “Para onde caminha a enfermagem brasileira da APS?”, promovido pelo Departamento de Enfermagem na Atenção Básica (DEAB) da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), realizada durante o 73º Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBEn), vem apresentar, por meio deste documento, para a sociedade brasileira os principais desafios enfrentados pelas(os) trabalhadoras(es) em enfermagem na rede da APS no Sistema Único de Saúde (SUS). No Brasil, a enfermagem é a maior força de trabalho no SUS e representa mais de 60% da força de trabalho no setor da saúde, formando, em 2022, um coletivo de mais 2,7 milhões de profissionais, entre enfermeiras(os) (676.660), técnicas(os) (1.627.517), auxiliares (449.827) e obstetrizes ou parteiras (359) que atuam em diferentes níveis de atenção à saúde e instituições de ensino, pesquisa e serviços (pública, privada contratada ou conveniada ou filantrópica)2 .Destaca-se que a atuação das(os) trabalhadoras(es) em enfermagem contribui para a universalização do acesso à atenção resolutiva e de qualidade, para o fortalecimento dos espaços democráticos de participação e controle social, para a mediação de ações intersetoriais que possam incidir na determinação social da doença, para promover a saúde e reduzir as desigualdades, ainda para a formação de trabalhadoras(es) de saúde para o SUS.O SUS brasileiro vem sofrendo com o processo de desmonte crônico executado por meio do subfinanciamento público e da baixa participação nos gastos públicos no total de gastos com saúde nas três esferas de governo. A Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos (EC 95/2016) agravou o desfinanciamento do SUS o que ameaça à manutenção/ampliação de equipes de saúde da família, desmonte do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) e a integralidade da atenção. Existem estudos que demonstram a piora de indicadores da saúde com aumento de mortes prematuras. Além disso, a reforma trabalhista e da previdência causou repercussões na gestão do trabalho da APS agravando e aprofundando a precarização do trabalho, pagamento de baixos salários, ausência de piso salarial, jornada de trabalho de 40 horas. Acrescenta-se nessa conjuntura as interferências realizadas pela Política Nacional de Atenção Básica de 2017 (PNAB/2017) nas atribuições da enfermagem e no processo de trabalho das equipes de saúde da família (eSF), como por exemplo, transferindo práticas de enfermagem como atribuições dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Ainda, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 2.979/2019 (Previne Brasil) alterou a forma de repasse de recursos para a APS nos municípios extinguindo o PAB fixo e condicionando o repasse ao cadastro de usuários nas unidades básicas de saúde e a indicadores de gestão que são de natureza quantitativa (números) e não refletem de fato a melhoria das condições de saúde da população e a realidade epidemiológica do município. Neste sentido, a política governamental de privatização do setor público tem sido claramente explicitada como, por exemplo, nas propostas de participação do setor privado na execução da política de APS (terceirização), pois propõe articulação, bem como, firmar contratos com órgãos e entidades públicas e privadas, incluindo instituições de ensino, cujos interesses são antagônicos ao direito à saúde da população e a efetivação do SUS. Nesse contexto, destaca-se a necessidade de ampliar a participação da enfermagem nas diversas instancias de decisão política do país e fortalecer o protagonismo das(os) trabalhadoras(es) e estudantes de enfermagem nas etapas preparatórias, Municipal, Estadual e Nacional da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), que ocorrerá em julho de 2023. É fundamental a participação no debate e na formulação de proposições para enfrentar: a crise de financiamento do SUS; a reformas fiscal, trabalhista e previdenciária e os impactos na atenção integral à saúde das pessoas e grupos sociais nos territórios e nas regiões de saúde; a redução drástica dos investimentos na ciência, tecnologia e inovação e os impactos na pesquisa e nos processos cuidar e assistir. Reafirmamos a necessidade do fortalecimento do SUS e essa questão passa pela garantia do estabelecimento de uma gestão pública, especialmente na APS, pois estes serviços atuam como ordenadores da Rede de Atenção á Saúde (RAS), portanto a gestão da APS e do SUS não podem estar atendendo aos interesses privados. A APS com gestão privada ficará impossibilitada de cumprir de forma adequada e ética sua atribuição de coordenadora dos cuidados em saúde da populaçãoEm diversos fóruns sobre educação e formação das(os) trabalhadoras(es) em saúde os debates e reflexões apontam para um quadro de deterioração da educação em enfermagem – caracterizada pela chamada flexibilização regulatória do MEC que favorece a autorização de cursos na modalidade de ensino a distância (EAD) fora das normativas vigentes; falta de monitoramento quanto ao cumprimento das diretrizes em vigor e morosidade no processo de atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais de Enfermagem (DCN – ENF) em curso no âmbito do conselho nacional de educação (CNE), no Ministério da Educação, desde 2017; e cortes de recursos que impactam negativamente o funcionamento das unidades de ensino e o risco iminente de retirada dos conteúdos obrigatórios que perpassam o SUS; entre outros. Reiteramos nosso posicionamento pela revogação da Portaria 800/2021, do Ministério da Educação, e alertamos para os futuros impactos negativos desta ampliação de forma indiscriminada da oferta de cursos na modalidade de EAD com prejuízos em diversas áreas, sobretudo na área da saúde. A formação em enfermagem exige habilidades teóricas práticas e relacionais, as quais não podem ser desenvolvidas sem contato real com os pacientes, professores e equipamentos de saúde, bem como o aprendizado construído no convívio social nos espaços acadêmicos. Também, nos posicionamos pela revogação da Portaria nº 07/2021 que promove o desmonte da Comissão Nacional de Residência em Área da Saúde uni e multiprofissional. O processo de trabalho em enfermagem na APS enfrenta dificuldades e limites históricos das suas práticas, os quais foram agravados pelas políticas públicas de saúde e evidenciados pela pandemia da Covid-19 e precisam ser revisados com urgência, entre eles destacam-se: O número insuficiente de trabalhadoras(es) em enfermagem nas unidades de saúde que levam a sobrecarga de trabalho e adoecimento decorrentes do acumulo de atividades de assistência, gestão, apoio ao funcionamento do serviço de saúde, organização da demanda espontânea e da infraestrutura, em detrimento da execução de suas atribuições específicas, como a consulta de enfermagem que é uma ação central e privativa da(o) enfermeira(o) na APS. Cabe, portanto a revisão do dimensionamento de profissionais na APS de acordo com a natureza das ações de enfermagem; O aumento e multiplicidade das ações e procedimentos de enfermagem realizados, nas unidades de saúde apontam para a necessidade urgente do incremento de profissionais de enfermagem de apoio, para além daqueles lotados nas equipes de saúde da família. Cabe, portanto, a presença de enfermeiras(os) para a supervisão de enfermagem e de técnicas(os) de enfermagem de apoio, como por exemplo, sala de vacina, coleta de sangue, testes rápidos, acolhimento de pessoas com sintomas respiratórios (Covid-19 e outros), sala de observação, provisão, desinfecção e preparo de materiais assistenciais, organização de setores, entre outrosA extensa área territorial sob responsabilidade da unidade de saúde vem dificultando tanto o acesso do usuário ao serviço quanto das(os) trabalhadoras(es) da APS na realização das visitas domiciliares. Faz-se urgente reavaliar o quantitativo de população sob responsabilidades de uma eSF, bem como, das condições objetivas para dar conta da demanda; O vínculo empregatício precário que leva à rotatividade das(os) trabalhadoras(es) gerando sobrecarga e adoecimento para os que permanecem e a fragilização dos processos de trabalho com comprometimento do vínculo com a população atendida e a qualidade da assistência. Também, consideramos urgente e necessária a discussão e reflexão com as(os) enfermeiras(os) da APS sobre a proposição da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da implementação das Práticas Avançadas em Enfermagem (PAE) na APS, avaliando suas implicações para o processo de trabalho, bem como o risco de criar mais uma divisão técnica/social do trabalho entre as(os) enfermeiras(os), além de implicar na maior exploração do seu trabalho, pois as(os) enfermeiras(os) brasileiras(os) apresentam um quadro em nível nacional de sobrecarga, baixos salários, dupla jornada de trabalho, desvalorização e de falta de autonomia em muitos municípios para implementar ações que já fazem parte do seu escopo, desde a graduação e/ou adquiridos por meio da especialização na área. Ainda que existam inúmeras diferenças regionais, quanto ao escopo do trabalho na APS, as práticas curriculares para formação da(o) enfermeira(o) são universais, advindas da formação científica da profissão. Não é possível comparar o escopo de práticas da(o) enfermeira(o) brasileira(o) na APS com o escopo de outros países com processos de formação profissional diferente, onde não existem sistemas de saúde como o SUS e, principalmente com uma realidade epidemiológica, político-social e econômica muito diversa da nossa. Ressaltamos que muitas práticas que são legalmente de competencia das(os) enfermeiras(os), como a realização de consultas de enfermagem, a solicitação de exames e a prescrição de medicamentos, de acordo com protocolos institucionais, não tem sido implementadas em muitos municípios. Há necessidade de primeiro modificarmos essa realidade passando a realizar todas as nossas atribuições amplamente construídas e legalmente determinadas para a partir daí verificarmos se existe a necessidade de ampliar o escopo de trabalho das(os) enfermeiras(os) na APS brasileira e de que forma e com que garantias a categoria fará esse movimentoDe acordo com as análises do Conselho Nacional de Saúde3 , desde 2018, o Estado tem se afastado dos seus deveres constitucionais, por meio do desmonte da democracia e da participação popular, agravando as desigualdades, impondo a perda de direitos e adoecendo as pessoas. O Brasil necessita de um amplo processo de reconstrução nacional na perspectiva de construir um “Amanhã” com a garantia de Direitos, com o SUS fortalecido, o respeito à Vida e à Democracia e à institucionalidade definida constitucionalmente. Consideramos urgente e necessário o apoio social e político da sociedade civil e o compromisso dos poderes legislativo, executivo e judiciário para a adequação e mudança deste contexto de exploração do trabalho que não oferece condições apropriadas ao exercício do trabalho em saúde e que nos oprime e leva ao sofrimento psíquico e adoecimento das(os) trabalhadoras(es). Nesse sentido, é fundamental que ocorra: Revogação imediata da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos (EC 95/2016) e priorização de um financiamento suficiente para o SUS, com destaque para uma APS robusta; Revisão da Política Nacional de Atenção Básica publicada em 2017; Revogação do Previne Brasil; Fortalecimento dos espaços democráticos de participação e controle social no SUS; Apoio a formulação de uma Política Nacional de Criação da Carreira Única para Trabalhadoras/es em saúde com ingresso por concurso público, avaliação de desempenho para progressão na carreira no SUS, e que inclua a retomada das Mesas Municipais, Estaduais e Nacional de negociação permanente do SUS; Promoção da gestão pública democrática, participativa e transparente; Imediata execução da Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, que altera a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, para instituir o piso salarial nacional das(os) enfermeiras(os), das parteiras, das(os) técnicas(os) e auxiliares de enfermagem. No contexto específico do trabalho em saúde, as(os) trabalhadoras(es) em enfermagem reafirmam a importância da garantia de acesso da população à cuidados de enfermagem seguros e de qualidade, prestado em conjunto com as equipes multiprofissionais dos serviços de APS, bem como, da efetivação de políticas públicas de reconhecimento e valorização das(os) trabalhadoras(es) em enfermagem/ saúde. Para a mudança deste contexto de desmonte do setor público e das desigualdades sociais as(os) enfermeiras(os) da APS reunidas(os) no 7º SENABS/ 73º CBEn recomendam aos gestores Municipais, Estaduais e Federais responsáveis pela execução das políticas públicas de saúde queRealizem uma revisão sobre o dimensionamento das(os) profissionais de enfermagem nos serviços de APS e que se amplie o quantitativo de trabalhadoras(es) em enfermagem na APS para atendimento das necessidades especificas em saúde da população e para enfrentamento dos diversos problemas ocasionados pela pandemia da Covid-19; Invistam na ampliação da formação, qualificação e educação permanente em saúde (EPS) para todas as dimensões do trabalho na APS, por meio dos programas de residências, especialização, mestrado e doutorado profissional, cursos de aperfeiçoamento/atualização, entre outros; Implementem protocolos assistenciais embasados em evidências cientificas e no exercício profissional da enfermagem, contemplando a realidade epidemiológica da região, as necessidades em saúde da população local, a autonomia profissional, a qualificação da assistência e o respaldo técnico e legal; Promovam e financiem capacitações para a utilização das diversas tecnologias (inclusive as digitais) que possam dar apoio à complexidade das práticas da APS. Reafirmamos que queremos um Brasil com democracia, direitos, dignidade no trabalho e com acesso da população a serviços de saúde públicos e universais. Conclamamos as(os) trabalhadoras(es) em enfermagem para exercerem a reflexão crítica, engajamento e participação associativa em entidades representativas e científicas, do tipo associações e sindicatos, para o fortalecimento e empoderamento da categoria para o exercício da essencialidade social da enfermagem e para o trabalho de reconstrução e desenvolvimento da nação brasileira. Salvador, 19 de novembro de 2022. Trabalhadoras e Trabalhadores de Enfermagem da Área de Atenção Primária à Saúde