Enfermagem e os desafios do trabalho no século XXI: precarização, sobrecarga e luta por dignidade

Foto: Sandro Araújo / Agência Saúde DF
O mundo do trabalho vive uma fase de reconfiguração profunda, impulsionada por transformações tecnológicas, econômicas e políticas que alteram as formas de produzir e viver. No centro desse cenário está a chamada 4ª Revolução Industrial, que, ao integrar tecnologias como inteligência artificial, automação e plataformas digitais, vem reorganizando as relações laborais sob uma lógica de precarização, fragmentação e desresponsabilização empresarial. Para milhares de profissionais da Enfermagem, essas mudanças não são apenas uma abstração: elas se materializam no cotidiano como baixa remuneração, terceirização, vínculos frágeis, sobrecarga de trabalho e impactos severos na saúde física e mental.
A plataformização do trabalho e a legalização de formas contratuais mais flexíveis — como a terceirização irrestrita e o trabalho intermitente — são aspectos centrais desse processo. Na Enfermagem, isso se traduz na expansão de vínculos precários e instáveis, especialmente em hospitais e instituições privadas, onde profissionais muitas vezes trabalham como pessoa jurídica (PJ), cooperados ou sob contratos temporários. Esses formatos retiram direitos, fragilizam a proteção social e deixam o trabalhador ou trabalhadora à mercê de jornadas exaustivas, sem garantias mínimas como férias, 13º salário ou licença médica.
Outro fenômeno que atinge diretamente a categoria é o subdimensionamento das equipes, ou seja, a presença de menos profissionais do que o necessário para dar conta da demanda. Essa situação já é alarmante — e tende a se agravar com o envelhecimento da população, o aumento das doenças crônicas e os efeitos da crise climática sobre os sistemas de saúde. O resultado é uma sobrecarga contínua, com estresse, estafa e adoecimento físico e emocional, agravando os riscos relacionados aos processos de trabalho e comprometendo a qualidade do cuidado oferecido à população.
Além disso, as condições salariais continuam sendo um desafio histórico da Enfermagem. A baixa remuneração, em especial no setor privado, expõe a categoria a jornadas múltiplas para complementar a renda, o que amplia ainda mais os riscos à saúde e à vida. A recente ampliação dos lucros das operadoras de planos de saúde, revelada pela Agência Nacional de Saúde (ANS), escancara a contradição entre o enriquecimento do setor privado e a precarização dos profissionais que sustentam o cuidado no cotidiano. Em apenas um ano, os lucros saltaram de R$ 1,9 bilhão (2023) para R$ 10,2 bilhões (2024), enquanto ainda se resiste ao pagamento integral do piso da Enfermagem.
Esses problemas não são acidentais. Estão inseridos em uma racionalidade neoliberal que prioriza o lucro em detrimento da vida, da dignidade e dos direitos sociais. A lógica de mercado, aplicada à saúde, transforma o cuidado em mercadoria e os trabalhadores em peças substituíveis. Nesse contexto, as políticas públicas são sub financiadas, o SUS sofre ataques e as condições de trabalho se deterioram, mesmo em um país que viveu recentemente a lição brutal da pandemia da Covid-19 — marcada pela centralidade e pelo sacrifício das(os) profissionais da Enfermagem.
É nesse cenário que se faz urgente e inadiável a aprovação da PEC 19/2024, que vincula o pagamento do piso salarial da Enfermagem à jornada de 30 horas semanais. A medida reconhece não apenas o direito à remuneração digna, mas também a necessidade de preservar a saúde mental e física das(os) profissionais. Jornada compatível com a intensidade do cuidado é parte da qualidade do serviço oferecido à população — e um passo decisivo para valorizar uma categoria historicamente essencial, apesar de invisibilizada.
Além da luta pelo piso e pela jornada, é preciso reverter as reformas que legalizaram a precarização, fortalecer o financiamento do SUS, garantir concursos públicos e combater o subdimensionamento estrutural das equipes. A defesa da saúde pública passa, necessariamente, pela valorização efetiva das trabalhadoras e trabalhadores que a constroem diariamente.
Diante desse quadro, não basta esperar soluções vindas de cima. É hora de reorganizar a resistência, de conectar as pautas da Enfermagem aos grandes debates sobre o futuro do trabalho, de mobilizar a sociedade em defesa do cuidado, da saúde e da vida. O que está em jogo não é apenas o bem-estar de uma categoria, mas o direito de toda a população a ser atendida por profissionais valorizados, saudáveis e respeitados.
O futuro da Enfermagem está diretamente ligado à capacidade coletiva de resistir à precarização, exigir direitos e construir novos caminhos. Isso exige coragem, solidariedade e articulação entre sindicatos, entidades científicas, universidades, movimentos sociais e parlamentares comprometidos com a vida. Valorizar a Enfermagem é cuidar de quem cuida. E cuidar de quem cuida é garantir um país mais justo, saudável e humano.
Leia o artigo “O TRABALHO EM UM MUNDO MERGULHADO EM MÚLTIPLAS CRISES”, do professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia Rogério Silva, que está na página 35 do nosso Caderno de Dicas da 86ª Semana Brasileira de Enfermagem >>> 86SBEn (1)